quinta-feira, 6 de junho de 2013

Legumes e Tragédia

Repostagem
De uns tempos para cá  ela passava o dia com aquele riso  nos lábios,  percebia a mãe com ar de gata velha. Olhou um pouco para a filha e voltou a picar o coentro. 


A menina suspirou profundamente, levou um tapa no braço que apagou imediatamente a chama como por um sopro que viera da janela. 
Voltaram a picar legumes.
A filha entreteve-se com a  roupa  presa à ponta  do arame  que lhe rasgava um pouco. Fazia votos que  o vento soprasse de lado e desprendesse a peça. Queria vê-la voando , tocando a relva queimada , sumindo com o vento que corria arrepiando árvores, fazendo a mãe estalar a língua e correr nervosa para o terreiro (um riso bobo) ... a mãe de cabeça baixa não vira  riso, nem o  vento nem nada.Não fazia votos! Sóbria contemplava legumes e tragédia.

(Mariani Lima)

Imagem da Web

segunda-feira, 3 de junho de 2013

O Ladrão de Pratos

Foi numa manhã que  ele viajou. A vó na porta a limpando as lágrimas no pano, tio Carolino parecia não ligar, só o tocou no ombro. Lucinha chorou, pulou no pescoço, encheu o irmão de beijos, fazendo-o rir de seu alvoroço. Precisavam lembrá-la que tratava-se da ida do irmão e não seu retorno.
  Fiquei escondida no canto, por detrás da avó. Sentia o peito acelerado... uma dificuldade de respirar e um som no ouvido que me fez sentar no braço do sofá. Ele buscou o meu olhar algumas vezes, não na intenção de me arrancar alguma expressão de despedida, pois ele sabia que seria inútil,  mas na intenção de desculpar-se. No fundo ele sabia que eu era quem mais sofria, tanto que já ia descendo as escadas quando voltou e me deitou um beijou na face, tão inesperado que me desconcertou completamente. Depois foi sumindo na névoa da manhã. O tio entrou arrastando o chinelo e já era outro de frente pra caneca de café. Avó foi  "cuidar da vida" e Lucinha deitou no chão com o gato enquanto chupava o dedo. " Uma vergonha uma moça daquele tamanho chupando dedo!" 
Fiquei olhando o vazio como se eu o visse  , ou se esperasse o seu retorno para aquela manhã ainda. Sabia que isso seria cruel para mim. Sabia que a casa haveria de perder a graça. As tardes debaixo do pé de jamelão, as conversas na varanda. E foi mesmo assim que aconteceu. Não havia mais a alegria !
Nos tempos de sua estadia em casa, sempre que ele vinha de fora, eu ia para o quarto da vó e de lá ficava ouvindo suas besteiras e ele falava alto para eu escutar, e eu fingia dormir pra não dar confiança, mas sua presença era a luz da minha existência. 
Teve o dia que chegou a carta: ele dizendo que tinha sido bem recebido na casa do Tio em Belo Horizonte. Que o tio o levara  para a firma. Que a cidade era bonita. Que estava bem. "Que estava bem!" me encheu de revolta. Eu não estava bem! Parecia agora uma caveira. Lucinha me chamava de palito e avó passava a costura nas minhas saias.
Não tardou a segunda carta, efusiva falando da nova vida, das primas mineiras. Cristina era a prima mais bonita. _ Achei que escreveu isso para me atormentar. Igual quando roubava a carne do meu prato no almoço de domingo ou quando escondia minha roupa do banho . 
O tempo passou e fui me acostumando a vida sem sua presença. Voltei a frequentar a varanda e por fim a sentar-me na sombra do pé de jamelão. Voltei até sentar na pedra no fundo do terreno, e foi ali  numa tarde, quando eu não mais esperava, que senti seu beijo de novo em meu rosto.
Veio de mansinho, no seu passo silencioso de ladrão de pratos e me tascou o beijo rapidinho.Tão rápido como a lágrima que me traiu, a lágrima que se desculpou pela frieza da despedida e se aventurou em dizer tudo que eu mesma jamais diria!
"Quem chegar por último é mulher do padre" disse e puxou carreira. Era seu modo de me poupar. Não era à toa que era o meu  favorito. Foi exatamente assim que se apossou da minha alma. E nossas conversas mais profundas sempre se deram dessa forma: sem palavras. 
Um choro de criança me balançava toda, escondia o rosto na mão e uma alegria do tamanho do céu azul se estendeu sobre a minha alma...estava tudo bem, a vida voltara pra mim e o que eu mais queria, meu Deus...era parar de chorar!


(Mariani Lima)